domingo, 21 de outubro de 2012

Conto 5 - Morreu na contramão atrapalhando o tráfego*

* de Chico Buarque
(texto  meu)


Mais um dia comum para ele. Mais duas conduções para pegar. Mais um dia de trabalho pesado. Chegou atrasado, como sempre. Trabalho acumulado. Ele não se lembrava de ter deixado tanto trabalho em sua mesa ontem.

- Alberto não vem.

Foi a única coisa que disseram. Sem explicação, seu colega de sala não viria trabalhar e o que tinha de ser feito por dois, seria feito por um.

- Taí a explicação. – pensou ele. – Alberto é um folgado.

Um horário de almoço apertado. A marmita fria. O mesmo feijão com arroz de todo dia.

Aproveitou os minutos que lhe restavam e foi assistir ao jornal. Tinha um corpo estendido no chão numa rua qualquer da cidade. Não era uma rua desconhecida. O plástico preto que cobria o corpo também não. Era tudo sempre igual. Porém, uma coisa ele não podia deixar de notar: aquela venda parecia a do Seu Antônio, onde ele comprava cigarros e a cerveja do final de semana. Será que era lá? Eram tantas pessoas em volta. Rostos desconhecidos.

Ele pensou em quem ele conhecia. Percebeu que era um completo desconhecido na sua rua. Se foi lá, ele não saberia dizer só pelos rostos.

- Dane-se! Todo dia alguém morre nessa cidade. Nossa, olha a hora! Preciso voltar para a minha sala. E o Alberto nem ligou para saber como estava. Minha mulher continua me castigando com o sal. Ela diz que sou hipertenso. Eu nem fui ao médico. Como pode? Mulheres...

Caminhando, pensando, chegou à sua sala. Nada do Alberto. Reza. Reza para o tempo passar. Ele ia enrolar o trabalho. Ele sempre fazia isso no final do expediente. Passa o tempo, passam as horas. Salário era baixo mesmo. E a vida muito curta. Ele não sabia por que, mas não parava de pensar no saco preto na rua que parecia ser a sua.

Celular estava ligado? Sim, estava. Se fosse alguém da família tinham ligado. Família? Nessa cidade grande, quem é família de quem mesmo? Estavam todos perdidos por aí. Todos. Até ele. Qual a última vez que ele falou com os pais, coitados? Sabe-se lá quando. O dinheiro ele manda todo mês. Disso eles não podem reclamar.

- Sistema travado. Maravilha. Agora que acumula tudo mesmo. Tomara que na segunda o Alberto apareça. Ele terá que compensar.

Telefone tocando. Vontade zero de atender esse aparelho dos infernos. Já estava com dor de cabeça. Sextas-feiras deveriam ser mais relaxadas.

- Alô?
- O relatório contábil ficou pronto?
- Não, Senhor. O sistema travou.
- E o que eu tenho a ver com isso? Resolve!

Saco! Saco! Mil vezes, saco! Já não basta explorar os funcionários, ainda tem que ser grosso desse jeito. E o sistema foi ele quem escolheu. Suporte de merda. Raiva! Olha o fígado! Ele precisa estar bom pra encher a cara no final de semana.

Sistema travado ainda. Maldita tecnologia. No tempo de escola, era tudo no caderno, nas tabelas dos livros caixa. Máquina de escrever não pifava. No mínimo, acabava a fita. Velhice. Era esse o problema. Aposentadoria. Nem dá pra sonhar com isso com a porcaria de pensão que ele iria receber. Mas, teria paz. Nada de chefe berrando no ouvido dele. Quanto tempo falta? 15 anos. 15 anos? Será que sobrevive até lá. Aquele cara do saco preto não sobreviveu. E aquela rua, hein? Parecia a dele.

Ter que acordar cedo, pegar trânsito, ganhar pouco, comer marmita fria, comida sem sal, ouvir gritos de chefe, voltar pra casa no ônibus lotado e ainda torcer para não ser assaltado, morto, sequestrado.

Sequestrado? Brincadeira. O que ele tem para ser cobiçado? Um tênis falsificado e um celular quebrado. Vida de merda. Ele queria estar no saco. Seria mais um anônimo. Mais um indigente. Coitada da esposa, seria a única a chorar. E os pais morreriam de fome. Não pode nem escolher morrer. Vida de merda.

- Parei. Chega. Seis horas, vou para casa.

Ônibus lotado de novo. Quebra no meio do caminho. Por que ele acordou pra trabalhar hoje mesmo? Vai o resto do caminho a pé. Segura a carteira na mão. Nessa altura da vida, não sabe se acredita mais em Deus. Só reza para não ser assaltado.

Agora ele tem certeza. Era a rua dele no jornal. O saco ainda estava lá. As pessoas já tinham se dispersado. No meio da rua. Bem que a polícia podia ter tirado do lugar, botado no cantinho, liberado o tráfego. Morre e ainda atrapalha. Tinha uma viatura da polícia na calçada. Nem pedestre é respeitado mais.

O que fazer? Passa por cima do saco. Torce para não melar o tênis falsificado dessa gosma preta que já foi sangue quente um dia. Nojo. Por que não limpam logo isso? Incompetentes.

- Só posso ter levantado com o pé esquerdo hoje.

Chegou inteiro em casa. Ufa!

- Querido, como estão as pessoas na sua empresa?
- Bem, por quê?
- Ora, eles acabaram de perder um funcionário.
- Funcionário? Está doida, mulher?
- Doida? Aquele ali no chão. Você não viu?
- Aquele saco preto?
- Saco preto? É assim que você se refere ao Alberto, seu colega de sala?
- Alberto?
- Era ele.
- Ele morava na minha rua?
- Você não sabia?
- Puta merda! O Alberto, cara. Poxa, tão gente boa.
- Pois é...

5 comentários:

  1. Olha só como é a vida...vc arrasa com seus textos, Eve! Bjs

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  2. Muito boa!

    Estava com saudade de passar aqui!

    Um beijo

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  3. É forte. É pra pensar seriamente. Gostei muito! Parabéns pelo belo texto. Visito seu blog quase todos os dias e confesso que gosto muito de suas estórias, embora seja a primeira vez que comento. Beijos, Eve.

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  4. Nossa! que texto ótimo! vc está cada vez mais se superando! vai virar escritora menina! ta esperando o que? :)

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  5. ahahhahaha muito bom!
    Eu escrevi um e-mail pra vc, se pude rme responder ficarei muito feliz!

    :D

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